Se implementadas corretamente, ferramentas podem revolucionar compras pela Administração Pública.
Duas noções próprias da administração, da logística e do marketing vêm sendo recentemente utilizadas na Administração Pública brasileira para designar a automação e um novo regime (inovador) para as compras públicas: e-marketplace público e almoxarifado virtual.
O marketplace pode ser entendido como um local físico ou um meio ou plataforma virtual em que transações e negócios, compras e vendas, podem acontecer.
As transações poderão ocorrer de forma direta, com o fornecimento feito diretamente pelo mantenedor da plataforma aos consumidores (seria o caso de produtos vendidos diretamente pela Amazon ou pela Americanas, a partir de seus próprios estoques); mas, principalmente, ocorrem de forma intermediada, oportunizando-se a fornecedores externos utilizar a plataforma mantida pelo intermediário para oferecer bens e serviços aos consumidores, ficando a cargo dos fornecedores externos (lojas e e-commerces, por exemplo) a maior parte das etapas do negócio e do processo logístico, como precificação, recebimento da demanda, separação, envio, distribuição, etc.[1]
Quando tais transações são realizadas em meio virtual, por meio de plataformas digitais, fala-se em e-marketplace, marketplace online, marketplace virtual, marketplace digital. Trata-se de uma ferramenta de inovação tecnológica amplamente utilizada pelas pessoas em geral no âmbito privado, para a realização de todo o tipo de compras (basta lembrar de e-marketplaces como a Amazon, o Mercado Livre, o Aliexpress e a Americanas), mas que apenas recentemente vem sendo aplicada no âmbito da Administração Pública.
O almoxarifado virtual, por sua vez, é um conceito oriundo da logística, que começou a ser discutido na academia a partir de 1995, e se refere a uma inovação na gestão da cadeia de suprimentos, que visa diminuir custos e otimizar operações por meio de recursos tecnológicos.
Conceitualmente, trata-se de um modelo de negócio que visa utilizar a tecnologia da informação e algoritmos de decisão em tempo real para proporcionar eficiência operacional e visibilidade global ao inventário, automatizando a cadeia de suprimentos. É possível identificar no almoxarifado virtual forte inspiração no modelo just in time toyotista de cadeia de suprimentos virtual e ressuprimento, aliada ao uso da tecnologia da informação.
No âmbito empresarial brasileiro, o almoxarifado virtual tornou-se uma solução, isto é, um produto, que vem sendo comercializado por diversas empresas no mercado privado. Tais empresas vêm oferecendo-o como terceirização (o chamado outsourcing) da cadeia de suprimentos com diversos elementos de automação e inteligência empresarial.
Em termos resumidos, portanto, o almoxarifado virtual no Brasil seria a terceirização e automatização da gestão da cadeia de suprimentos de uma determinada organização, visando diminuir ou eliminar custos com estoques, distribuição, custos de propriedade, etc.
Em termos práticos, com a utilização de ferramentas inovadoras na Administração Pública, se teria dois cenários: (a) o da simples automação de processos licitatórios e contratações diretas com o e-marketplace público; e (b) com o almoxarifado virtual, um mais complexo, no qual, em vez de sempre se licitar e contratar item por item, o gestor público ter a possibilidade de acessar um ambiente virtual, para, nessa plataforma, realizar pedidos de materiais e insumos à contratada (terceirizada), que providenciaria a entrega desses bens ao órgão ou entidade pública, de acordo com determinados parâmetros e limites regulamentares e contratuais – sempre ao menor preço possível, por meio de uma licitação única cujo objeto seria a terceirização.
Almoxarifado virtual e e-marketplace na Administração Pública brasileira
O debate sobre a possibilidade da utilização de e-marketplaces e do almoxarifado virtual pela Administração Pública foi acendido recentemente na literatura jurídica brasileira, com a aprovação da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133/2021). Ocorre, entretanto, que no contexto brasileiro se vem muitas vezes utilizando as denominações e-marketplace público e almoxarifado virtual como sinônimos – o que revela algum grau de imprecisão conceitual.
O almoxarifado virtual, mais especificamente, vem sendo implantado na Administração Pública brasileira pelo menos desde 2013, por uma iniciativa pioneira do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
A iniciativa se materializou no Contrato 59/2013, que teve como objeto a contratação da “prestação de serviços continuados de outsourcing – para operação de almoxarifado virtual in company –, para suprimento e ressuprimento de insumos em plataformas virtuais, com execução mediante o regime de empreitada híbrida (por preço global e preço unitário), para atender às necessidades do ICMBio
Depois dessa experiência, diversos órgãos e entidades da Administração brasileira, como a Advocacia-Geral da União, o Banco do Brasil e a Infraero adotaram o almoxarifado virtual para determinadas categorias de insumos e produtos, como é o caso de materiais de expediente, informática, copa e cozinha e outros tipos de materiais de consumo. Mais recentemente, os estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro criaram seus almoxarifados virtuais.
O movimento mais conhecido do país nesse quesito ocorreu por parte do Ministério da Economia, que criou em 2020 o chamado Almoxarifado Virtual Nacional (AVN) para materiais de consumo administrativo, realizando uma licitação na modalidade pregão, em dois lotes divididos por regiões geográficas, geradora de uma ata de registro de preços à qual poderiam aderir (pegar “carona”), a princípio, os órgãos da Administração Pública direta federal. O AVN atualmente é um importante complemento ao sistema federal de compras públicas, em que são realizadas diversas atas de registro de preços e licitações em diversas modalidades, mas sobretudo por pregão.
O modelo de contratação do Almoxarifado Virtual Nacional (AVN) é muito promissor em termos de contratação, remuneração e de controle, podendo ser replicado em diversos entes, órgãos e entidades. Nesse modelo, se tem a contratação centralizada no ente federativo, com a possibilidade de adesão de órgãos e entidades, que realizariam seus próprios contratos com as empresas classificadas no pregão realizado pelo ente federativo.
Abrange-se apenas compras de alguns tipos de materiais (apenas materiais de escritório, expediente e consumo, por exemplo) e se tem uma remuneração do contratado por taxa de administração fixa (com um valor entre 8 a 11% do valor da aquisição, no caso do AVN), fretes inclusos, e redutores de remuneração nos casos de aquisições via marketplace (isto é, fora de tabela).
Nos objetos dos contratos de almoxarifado virtual já celebrados no Brasil, é comum que se preveja a prestação de serviços de terceirização do gerenciamento logístico, com diversos serviços agregados – entre eles, mas não somente, o e-marketplace. Entretanto, apesar de o marketplace ou serviços semelhantes por vezes estarem previstos nos objetos dos contratos, quando se está a tratar de contratos de almoxarifados virtuais públicos, o que se vê na prática é uma utilização muito limitada da ferramenta.
De fato, no cumprimento dos contratos celebrados pela Administração, não se está a utilizar e-marketplaces propriamente ditos, uma vez que em vários dos contratos de almoxarifados virtuais públicos analisados, as compras muitas vezes são realizadas diretamente da contratada; isto é, dos estoques da própria empresa terceirizada, que é a responsável por manter o almoxarifado virtual e por toda a cadeia de suprimentos.
Portanto, utilizando-se a classificação de Hagiu e Wright, nos almoxarifados virtuais mantidos perante a Administração Pública brasileira, atualmente, a empresa contratada parece estar mais a funcionar como um reseller (revendedor) do que como um marketplace.
Tudo isso faz com que a prática dos contratos se afaste da lógica dos e-marketplaces propriamente ditos, nos quais a escolha da melhor proposta dentre os fornecedores cadastrados perante a plataforma ficaria a cargo do órgão ou entidade contratante e que a alocação de direitos de controle sobre decisões quanto ao fornecimento, ficaria mais pendente para os fornecedores finais e não para a intermediária mantenedora da plataforma.
O que se verifica é que, na execução dos contratos de almoxarifado virtual que já analisamos, o que mais se assemelha a um e-marketplace no cumprimento das avenças é a plataforma ou sistema web que os usuários internos das entidades da Administração utilizam para realizar pedidos pelo almoxarifado virtual.
Diante desse cenário, além de não se confundir mais e-marketplace com almoxarifado virtual, algumas precauções merecem ser tomadas para a utilização dessas novas ferramentas, sem que se esbarre em entraves legais e até mesmo constitucionais.
Fonte: “https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/no-limite-da-inovacao-e-marketplace-e-almoxarifado-virtual-em-compras-publicas”