Entregas por drones ou com robôs estão cada vez mais próximas da nossa realidade, mesmo que apenas pelas notícias sobre inovações na área de logística. Apesar disso, o fator humano ainda é indispensável para que as encomendas cheguem à casa do consumidor, porque enquanto as entregas não entram voando pela janela ou um robozinho não bate à porta com um pacote “em mãos”, o entregador é o principal responsável pela finalização da jornada de compra no comércio eletrônico.
Sendo os entregadores tão importantes para a experiência e o contato com o consumidor na ponta, nada mais justo do que entender exatamente como é o trabalho desses profissionais e qual sua realidade de trabalho. Quem constrói a última milha do e-commerce?
A resposta para essa pergunta, na verdade, divide-se em mais de uma possibilidade. O desenvolvimento desse “perfil” passa por situações, experiências e trajetos individuais de cada entregador. Entender a complexidade de traçar uma persona geral foi o ponto de partida para chegar à conclusão de que, além de impossível e ingrata, essa missão precisava de outra abordagem – três, com mais exatidão. Um trio que não visa falar por toda classe, mas sim passar adiante uma perspectiva única por trás do próprio volante.
O E-Commerce Brasil entrevistou três dos muitos personagens que integram esse braço forte da logística. Em cada particularidade, todos abordam desafios, sonhos e trajetórias até conhecerem o ramo de entregas e suas visões sobre o mercado no presente e no futuro.
“O caminhão é a minha casa”
A caminhoneira Viviana Lima de Lucena, de 37 anos, é um ponto fora da curva. A paixão por caminhões começou ainda na infância, já que seu pai também era caminhoneiro. “Meu primeiro emprego foi num shopping, depois só trabalhei com caminhão”, relembra. Atualmente, Viviana trabalha com sua própria carreta, atuando nas entregas entre centros de distribuição.
Apesar de gostar muito da profissão, a necessidade de trabalhar tanto veio por conta da viuvez, há aproximadamente dois anos. A entregadora foi casada por 21 anos com outro caminhoneiro, que estava dirigindo a trabalho quando passou mal e morreu. Ele sofria de uma doença congênita no coração. “Trabalhar é um jeito de não deixar a mente vazia”, diz. Já a filha detesta esse tipo de veículo. “Ela não chega nem perto do caminhão”, relata.
Quando trabalhava com veículos menores, Lucena se dirigia a algum centro de distribuição, carregava o veículo com produtos e os entregava na casa dos clientes. Hoje, ela faz a rota entre os CDs do Mercado Livre, na região metropolitana de São Paulo, abastecendo a carreta com aproximadamente mil volumes para transportá-los até outro centro de distribuição, onde a carga será dividida entre os veículos de menor porte, que farão a entrega na casa dos consumidores.
Mesmo trabalhando em outra rota, ela lembra bem os tempos de quando encontrava os consumidores de e-commerce. “Tem cliente que é maravilhoso, que até vira amigo. Mas tem uns que acordam ‘virados’. Às vezes, também chegávamos às casas e não encontrávamos ninguém, aí o jeito era voltar com a mercadoria. O ser humano é complicado, mas nunca tive grandes problemas. Pelo contrário: as pessoas se admiram quando veem uma mulher dirigindo um caminhão”, diz.
A segurança, ou falta dela, é uma preocupação constante de quem trabalha com entregas. O valor alto de alguns produtos, principalmente os eletrônicos, é um alvo bastante visado, aumentando o risco desses profissionais no dia a dia. “Quando é uma carga de valor muito alto, só podemos sair com escolta, mas mesmo assim corremos o risco de sermos roubados todos os dias. Uma das táticas para evitar esse tipo de situação é ligar para o cliente antes de chegarmos para evitarmos ficar parados muito tempo no mesmo lugar. É entregar, entrar no carro e ir embora. A galera fica muito de olho”, detalha a caminhoneira.
Viviana lembra ter escapado de um roubo quando foi buscar uma encomenda em Carapicuíba, também na Grande São Paulo. “Eu estava esperando o cliente para retirar a mercadoria quando percebi três homens se aproximando do caminhão. Um estava com a mão embaixo da blusa para me assaltar. Eu só tive tempo de avisar o cliente que estava indo embora porque iam me roubar”, relembra.
Fator pandemia
A pandemia foi um divisor de águas na vida dos entregadores. Um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado em maio deste ano, mostra que, entre 2016 e 2021, o número de entregadores de mercadorias via moto aumentou, passando de 25 mil para 322 mil, e não houve redução durante a pandemia de Covid-19. “Aumentou demais a demanda de trabalho, nós trabalhávamos como loucos, não parávamos. [Com a reabertura das lojas físicas] diminuiu, mas agora está voltando por causa do fim de ano. Em época de Black Friday e Natal, trabalhamos bastante”, conta Lucena.
Mais infraestrutura e agilidade
Na última milha, além da segurança, destacam-se outros dois dos principais desafios: o trânsito intenso de veículos, principalmente nas grandes cidades, e a falta de infraestrutura daqueles que passam o dia fora e longe de um ambiente para descansar e se cuidar. “Por ser mulher, também é difícil arranjar banheiros. Nem todos os lugares têm infraestrutura para nos atender”, reclama Viviana.
A caminhoneira também pontua a falta de agilidade de carregamento em alguns centros. Para ela, faltam companhias que levam em consideração o fator humano. “Algumas empresas economizam com a equipe de carregamento, atrasando todo o processo. Se fosse mais rápido, o serviço renderia muito mais. Acabamos saindo atrasados com o sol quente para entregar de porta em porta. É muito cansativo. Deveria ter mais gente nas equipes de carregamento e descarregamento. Quem sofre mais é quem faz a entrega direta ao cliente, que já sai estressado do CD. Tem consumidor que só pode receber a encomenda de manhã, mas se você chega atrasado, o cliente já saiu de casa”, desabafa.
A caminhoneira também acha que o valor do frete deveria ser mais alto. “Tem gente que sai para fazer entrega com o seu carrinho próprio porque está desempregado, o mercado não está fácil. Então, se o valor fosse mais alto, ajudaria bastante”, apela.
Inteligência logística na ponta
Outro exemplo encontrado no universo logístico é Aldo Henrique, que mora no bairro Cidade Continental, em Vitória (ES). Com 35 anos, o profissional atua como entregador da Wine, importadora de vinhos, há quase nove anos. Após retornar de algumas temporadas em Portugal, Henrique decidiu tentar a vida como motorista, função que nunca teve em outros trabalhos no passado, mesmo quando chegou perto da logística.
“Atuei como ajudante de motorista por algum tempo e sempre tive o desejo de trabalhar dirigindo. O primeiro volante que peguei foi de um caminhão e, a partir disso, meu interesse pela profissão de entregador ficou ainda mais forte. Até por isso, acredito que gostar de dirigir é um fator que torna minha função mais fácil”, conta.
A rotina do profissional começa cedo, mas a escolha disso é principalmente dele. Após acordar por volta de 4h30, Henrique faz uma caminhada de 8 km, retornando para casa e saindo para chegar na empresa por volta de 5h45. Neste momento, ele trabalha na separação das cargas, dividindo-as em cada van a partir dos bairros.
“Eu mando as garrafas para cada veículo conforme a localização dos destinatários. Além disso, os carros passam por verificação e são carregados em ordem decrescente, ou seja, do último ao primeiro cliente, para facilitar a descarga das caixas”, explica.
Enquanto os entregadores pausam para o último café antes de sair para entregar as encomendas, os comprovantes de entrega são gerados. A partir disso, cada entregador sai com um celular no qual o roteiro otimizado de entrega já foi traçado. Ao todo, Henrique fala entre 90 e 100 entregas por dia em épocas de alta demanda.
Segundo ele, a recepção dos clientes têm sido positiva com o modelo empregado, além de a ocasião auxiliar neste momento. “Todos nos recebem com muita alegria e receptividade, elogiando a rapidez na logística. Acho que a sensação de receber seu produto na data estipulada ou antes disso acaba por melhorar a relação, inclusive com o entregador”, diz.
Além disso, Henrique afirma que essa felicidade dos compradores foi mudando ao longo da pandemia, pois atualmente é mais fácil criar um contato com alguns clientes, recebendo o produto em mãos, já que a maioria trabalha de casa. “A facilidade para encontrar os compradores é positiva, pois estreitamos os laços com eles. Acredito também que as pessoas estão mais humanas no que diz respeito ao modo de tratar o entregador”, afirma.
Perspectiva
Apesar dos traços simples e até nervosos de uma primeira entrevista, não há relutância em dizer que o mercado deve crescer mais com o tempo cada vez mais reduzido que as pessoas passam em lojas físicas. A compra mais “cômoda”, na visão de Henrique, é o que auxilia mais no crescimento do setor de entregas.
“Com tanta demanda por rapidez, será preciso ter pessoas que cumpram esse desejo de entregas quase imediatas dos produtos comprados. Sendo assim, vejo o e-commerce como um setor com muito potencial para crescer e amadurecer, principalmente na automatização de alguns processos na logística, o que pode facilitar o trabalho dos entregadores”, conclui Aldo.
A visão dele pode ser confirmada em partes por dados do Ipea. Segundo o levantamento, há aproximadamente 1,5 milhão de pessoas trabalhando com transporte de passageiros e entrega de mercadorias no Brasil. A maioria (61,2%) é de motoristas de aplicativo ou taxistas, 20,9% fazem entrega de mercadorias em motocicletas e 14,4% são mototaxistas.
O canto da logística
“Quem canta os males espanta”, diz o antigo ditado. A música, aliás, pode servir de aliada desde momentos de pouca inspiração até durante afazeres domésticos e dia a dia de trabalho. Para Jonatas Santos, o “Lobinho”, entregador que atua com o Mercado Livre por meio da Murici Logística, a relação é ainda mais complexa, impossível de não existir e natural. Após uma carreira de 25 anos como músico, o profissional decidiu seguir para o lado do comércio eletrônico em 2020 por acreditar que esse é um dos mercados “do presente e futuro”, como ele mesmo afirmou durante uma conversa.
“Antes de me tornar entregador na Murici Logística e prestar serviços para uma empresa grande como Mercado Livre, já conciliava transporte e música. Além de vocalista do Grupo Mama Brothers, trabalhei como motorista de peruas de transporte. Aliás, foi nesse período que ganhei o apelido de Lobinho, já que também atuava no rádio amador com o código de ‘Lobo Solitário’”, explica.
A relação de Lobinho com a logística pode ser descrita na mesma intensidade em que ama a música. Um músico que se tornou entregador ou um entregador que também é músico? Pouco importa. A mescla de ambas atividades já compõem a personalidade e o cotidiano de Jonatas. De certa forma, esse entrelaçamento com a primeira arte o ajudou a lidar com um início animado mas conturbado nas entregas.
“Foram dez dias contados de trabalho com logística antes da pandemia. Apesar do alto fluxo de pacotes que entreguei nesse período, com média de 180 por dia, o medo da doença era muito grande e a desconfiança na segurança sanitária também. De forma natural e por hábito, eu cantava no meu dia a dia, seja no CD ou na entrega em si. Foi nisso que percebi o quanto as pessoas gostavam e achavam curioso um entregador-cantor”, conta o profissional.
O raio de trabalho de Lobinho é na Zona Oeste da capital paulista, em bairros na região da Rodovia Raposo Tavares. Há três anos na função de entregador, ele não se vê longe do ramo e quer crescer cada vez mais. “Sou hiperativo. Preciso estar todo dia ali, na atividade. Por isso, gosto do que faço. Aos que visam ingressar na profissão, quero reforçar a importância de gostar de socializar, de se comunicar e, principalmente, da rua”, aconselha.
Para compreender o que cerca sua rotina, Lobinho foi questionado e detalhou a maioria de seus passos durante dias normais de trabalho. Do início, ele levanta às 5h30, faz seu café e sai de sua casa, em Osasco, na Grande São Paulo. Em seguida, com seu carro, parte para o estacionamento de carregamento do Mercado Livre, em Barueri, também na região metropolitana de SP.
“Pego a van, tomo o café que preparei e vou até o CD em Barueri para ver minha escala e sair para entregar. Saio carregado (200 pacotes e 80 paradas) e paro por volta de 13h30 com essas entregas todas finalizadas. Após o almoço, abro o aplicativo de coleta e realizo de sete a oito coletas (500 e 600 pacotes) com os vendedores na mesma região, encerrando até 17h30. Por fim, retorno à base para descarregar os produtos coletados, processo que dura até as 18h30. Repito o trajeto no retorno, deixando a van e pegando meu carro. Chego em casa, no máximo, até as 20h”, detalha Jonatas.
Regrado, não? Apesar de aparentar naturalidade com a rotina informada, Lobinho cita que foram meses a fio de estudo sobre os processos de logística do Mercado Livre, além de muita disciplina e agilidade durante a rotina. De certa forma, o forte ritmo implicado no comércio eletrônico durante a pandemia também fez com que o entregador lidasse rapidamente com as necessidades da profissão.
“O principal desafio para essa profissão é, por incrível que pareça, entregar. Digo isso porque existem motoristas de diferentes tipos, desde aqueles que saem carregados e entregam tudo em tempo hábil até quem começou com intuito de só ganhar dinheiro – chamo esse perfil de ‘aventureiro’ – e sai com poucos produtos, mas não consegue entregar todos. É por isso que acredito que entregar é um grande desafio, mas especialmente se você não ama a função”, afirma.
De acordo com dados do Ipea de 2021, existem no país 322 mil motociclistas que fazem entregas e 55 mil trabalhadores que usam outro meio de transporte para entregar produtos. O estudo mostra que a maioria desses trabalhadores é homem, preto ou pardo, e tem menos de 50 anos.
Como entregador, Lobinho hoje tem benefícios e obrigações de um CLT (regime da Consolidação das Leis do Trabalho), o que em sua avaliação é uma contrapartida positiva no atual cenário. Ele cita também o respeito e a consideração pelo profissional como valências importantes no ambiente da logística
“Às empresas que atuam com entregadores próprios, afirmo que entender a logística como um todo passa por alinhar seus dois lados: executivo e operacional. Por isso, compreender o ponto de vista e ouvir o entregador, que é quem está todo dia nas ruas, são de suma importância para a aplicação de estratégias e teorias”, salienta.
Presente e futuro em um só
A logística e o e-commerce, na visão do entregador, são duas metade da mesma moeda: o futuro. Mais do que isso, Lobinho acredita que a necessidade de sua profissão será ainda maior ao longo dos anos, seja dirigindo uma van ou operando um drone para driblar o trânsito carregado da cidade.
“O país vai virar e-commerce. A estabilidade dos empregos, na minha visão, além do hábito de consumo das pessoas, mostra como o segmento é uma realidade. Acredito que os próximos passos podem ser o trabalho ainda mais constante com demandas instantâneas e a entrega em, no mínimo, 24 horas. Seja o que for, me vejo pronto para seguir e me adaptar”, concluiu.
Fonte : https://www.ecommercebrasil.com.br/noticias/logistica-os-entregadores-que-levam-encomendas-pelo-brasil-afora