A tecnologia avança aceleradamente, mas ainda distante da condição humana

O ponto a ressaltar é que mesmo os sistemas mais sofisticados como o da Sophia não chegam nem a tangenciar a complexidade do funcionamento do cérebro humano.

Em Hamburgo, importante cidade portuária no norte da Alemanha, em 2017, a polícia foi chamada   pelos vizinhos porque a Alexa, assistente virtual da Amazon, “estava dando uma festa com o som altíssimo”. O dono do apartamento, Oliver Haberstroh, que na ocasião estava bebendo cerveja num bar, ao voltar para casa encontrou uma nova fechadura; na delegacia do bairro lhe entregaram as novas chaves e uma fatura. A Amazon, após minuciosa investigação, alegou que a Alexa foi ativada remotamente e o volume aumentou através do aplicativo de streaming de música móvel de terceiros, mas mesmo assim ofereceu pagar o custo do incidente. As duas hipóteses – defeito do assistente virtual ou ativação remota – não configuram autonomia, livre arbítrio, agenciamento, nenhum dos atributos que caracterizam os humanos.

Atlas é um humanóide criado pela Boston Dynamics (2013) capaz de reproduzir movimentos humanos tais como saltar, girar no ar, dar cambalhotas, todos efeitos do campo da robótica. Trata-se de um sistema de controle avançado que, recentemente, usando algoritmos de otimização, automatizou alguns desses movimentos (https://www.bostondynamics.com/atlas). Sophia, criada pela Hanson Robotics (2016), reconhecida como a fabricante de robôs “mais humanos”, dotada de expressividade, estética, interatividadade, pêlo maleável, tem dezenas de computadores acoplados que permitem simular uma gama completa de expressões faciais, rastrear os rostos da audiência, reconhecer rostos e imitar as expressões faciais de outras pessoas (para quem quiser acompanhar a vida de Sophia: https://www.hansonrobotics.com/being-sophia/). O primeiro simula o sistema motor humano, o segundo simula o sistema cognitivo humano, o aprendizado é o elemento comum entre os dois sistemas: programados para aprender como aprender.

As máquinas inteligentes estão sendo programadas para, com base em grandes conjuntos de dados, aprenderem por meio de processos não totalmente explicáveis, i.é., os programadores dessas máquinas não sabem exatamente como tais máquinas aprendem para desempenhar as tarefas (o chamado “the black box problem”, que não deve ser confundido com autonomia). O cientista da computação Davi Geiger alerta que aqui reside, talvez, a maior questão ética na inteligência artificial (IA), o fato de não sabermos o que e como as máquinas realmente aprendem, não deixando de lembrar que também não sabemos o que e como exatamente os humanos aprendem.

Os modelos de IA amplamente utilizados são chamados de “redes neurais” porque são inspirados no funcionamento do cérebro. Simplificadamente, no cérebro ocorrem continuamente impulsos nervosos  (sinais químicos e elétricos) que são conduzidos até o próximo neurônio num fenômeno conhecido como sinapse, ou seja, transmite a informação entre as camada de neurônios (com mais precisão: a sinapse refere-se a interrupção que ocorre entre as duas camadas de neurônios). Cada neurônio tem uma espécie de antena, chamada de dendritos que é o canal de entrada da informação. Os modelos de redes neurais reproduzem essa lógica (não são programados para executar tarefas a partir de equações predefinidas, a programação tradicional), e o nome Deep Learning (aprendizado profundo) vem do fato de que possuem várias camadas de processamento compostas de neurônios artificiais (cada camada aperfeiçoa a informação). Segundo o neurocientista Roberto Lent, “mesmo as alternativas oferecidas pela Inteligência Artificial, que podem propiciar retornos ‘inteligentes’ de reciprocidade aos aprendizes, não atingiram ainda a riqueza de possibilidades das interações entre humanos”.

O ponto a ressaltar é que mesmo os sistemas mais sofisticados como o da Sophia não chegam nem a tangenciar a complexidade do funcionamento do cérebro humano. O aprendizado humano depende de um grande número de neurônios que por sua vez formam circuitos complexos responsáveis pela nossa estrutura cognitiva e comportamental. Vejamos alguns números ilustrativos dessa complexidade: (a) cada ser humano tem 86 bilhões de neurônios, e cada neurônio recebe cerca de 10 mil sinapses (ordem de grandeza total na casa de quatrilhão); (b) a partir da 10º semana de gestação, a produção de novos neurônios no cérebro humano em desenvolvimento atinge aproximadamente a velocidade de 250 mil novas células por minuto; (c) as tecnologias atuais não permitem estudar o cérebro humano a nível microscópico, levando os cientistas a recorrerem a animais: o tempo de computação e análise utilizado por pesquisadores chineses para estudar as conexões de 135 mil neurônios de uma mosca foi de 10 anos, estimando-se em 17 milhões de anos o tempo necessário para o mesmo procedimento no cérebro humano (“O Cérebro Aprendiz”, Roberto Lent, 2019).

A IA hoje é fundamentalmente modelos estatísticos que, baseados em dados, calculam a probabilidade de eventos ocorrerem. Esse pequeno avanço tem sido responsável por transformações na economia, nas relações pessoais, na sociedade em geral, mas estamos a léguas de distância da chamada “General AI” que, supostamente, seria dotada de capacidades que superariam os humanos.

*Dora Kaufman é pós-Doutora COPPE-UFRJ (2017) e TIDD PUC-SP (2019), Doutora ECA-USP com período na Université Paris – Sorbonne IV. Autora dos livros “O Despertar de Gulliver: os desafios das empresas nas redes digitais” (2017), e “A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana?” (2019). Professora convidada da FDC e professora PUC-SP.

 

 

Fonte : portalnovarejo.com.br

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